05 outubro 2011

Uma mulher, seu perfume

Coco Chanel revolucionou a moda do século XX e escreveu a história do perfume mais famoso de todos os tempos
Câmbio sobrevalorizado em relação ao dólar e uma classe média, mais endinheirada, ávida por consumir produtos de luxo.

Não, não se trata do Brasil ou da China nos dias de hoje. Era o mundo dos anos 1920. O fim da I Guerra Mundial dava impulso à economia e à criatividade de pintores, escritores e artistas, e possibilitava o surgimento de talentos como Coco Chanel, a francesa que revolucionou a moda do século XX e criou o perfume mais famoso de todos os tempos, o Chanel nº 5.



A fragrância criada pelo perfumista Ernest Beaux tem sua fascinante história contada no livro "O Segredo do Chanel nº 5". A autora é Tilar J. Mazzeo, a mesma do simpático "A Viúva Clicquot", que conta a trajetória da empresária Barbe-Nicole Clicquot Ponsardin, uma mulher inteligente e batalhadora, como Coco Chanel.

Depois de perder a mãe, Jeanne Chanel, que, exausta de trabalhar e dar à luz cinco filhos, sucumbiu à tuberculose em 1895, Gabrielle (Coco) foi entregue pelo pai Albert, um mascate, ao convento de Aubazine, no sudoeste da França. Ela tinha 12 anos.

Nesse orfanato, Gabrielle aprendeu a costurar. Foi lá também que começou a desenvolver seu senso estético, a obsessão pela pureza e o minimalismo. "As pilhas de roupas brancas nos armários, as paredes caiadas, o cheiro de lençóis fervidos em panelas de cobre suavizado com raízes secas de íris e os aromas do ferro de passar. Havia o perfume de armários de roupa branca revestidos de pau-rosa e verbena. Havia mãos limpas e pisos de pedra lavados. Acima de tudo, havia o cheiro de sabão de sebo tosco sobre a pele das crianças e corpinhos impiedosamente esfregados. Era o perfume de tudo limpo. Aubazine era um código secreto de aromas e, no futuro, estaria na essência de tudo que ela achasse belo."

"Quero dar às mulheres um perfume artificial. Sim, estou dizendo artificial, como um vestido, algo que precisa ser feito"

Aos 18 anos, as adolescentes sem vocação para a carreira religiosa deveriam deixar o convento. Gabrielle saiu. Foi trabalhar como vendedora de lingerie e meias, mas, descobrindo-se "um corpinho sensual", tentou a carreira de cantora e dançarina. Não deu certo. Da experiência ficou o apelido de Coco, por causa das canções "Qui au'a Vu Coco" e "Ko Ko Ri Ko", e o carimbo de ser uma "demi-mondaine" - algo entre atriz e prostituta.

Entre ser uma das amantes de um homem rico e voltar a vender meias ou costurar culotes, Coco escolheu viver por seis anos na grande propriedade rural do bonito oficial francês Étienne Balsan. A amante oficial de Balsan, a célebre cortesã Émilienne d' Alençon, imortalizada no romance "Em Busca do Tempo Perdido", de Proust, causou forte impacto em Coco. Émilienne não cheirava como outras cortesãs, que se encharcavam de jasmim, almíscar, patchuli ou angélica. Mas também não fingia ser uma refinada ingênua, perfumando-se com aromas de violetas e rosas. Para Coco, ela cheirava a limpeza, estava sempre com cheiro de cabelo recém-lavado.

Cansada de ler romances na cama até o meio-dia e aprender a cavalgar, Coco, em 1909, pediu ajuda a Étienne para montar um ateliê de chapéus em Paris. Um ano depois, já amante do inglês Arthur "Boy" Capel, Coco abre sua loja no famoso endereço da rue de Cambon, nos fundos do hotel Ritz.

Soldados americanos em frente da loja Chanel, na rue de Cambon: antes, durante a ocupação, eram os alemães que corriam para comprar o perfume já famoso no mundo
Os estilistas de alta costura começavam a lançar fragrâncias com seus nomes. Paul Poiret em 1911 e Maurice Bababi em 1919. Coco Chanel seria a terceira. Ela já era famosa criando e vendendo roupas esportivas. Ao final da I Guerra Mundial, em novembro de 1918, havia amealhado uma pequena fortuna, apostando em vestidos de jérsei, chiques e soltos. "A guerra me ajudou", disse Coco, anos depois.


Já nessa época, o interesse por perfumes franceses vinha crescendo nos Estados Unidos, o maior mercado de produtos de luxo do mundo. Lá, grandes empresas de fragrâncias, como Bourjois e Coty, abriam escritórios de representação.

O momento não passou despercebido a Coco, e em 24 de julho de 1919 ela registrou oficialmente uma linha de produtos que planejava chamar Eau Chanel. No ano seguinte, Coco decide estudar os princípios da perfumaria moderna, que não dependeria apenas de fragrâncias extraídas da natureza, mas criaria algo novo, a partir de aromas sintéticos.

"O perfume que muitas mulheres usam não é misterioso. (...) Mulheres não são flores. Por que desejariam cheirar como flores? Gosto de rosas e o cheiro da rosa é muito bom, mas não quero uma mulher cheirando como uma rosa", disse Coco. "Quero dar às mulheres um perfume artificial. Sim, estou dizendo artificial, como um vestido, algo que precisa ser feito". Ela também estava imaginando uma fragrância que confundisse os limites entre uma moça respeitável e uma mulher sedutora. Queria algo sexy, provocante e limpo.

O perfumista Ernst Beaux aceitou a encomenda. A fórmula final misturava rosa, jasmim, ilangue-ilangue e sândalo. Mas o segredo estava nos aldeídos - aromas que hoje em dia são reconhecidos em detergentes, xampus, desodorizadores de ambientes e antitranspirantes. Estão na família dos cheiros que hoje se associam a algo limpo.

Os aldeídos são um estágio no processo natural que ocorre quando a exposição ao oxigênio transforma um álcool em ácido. Jacques Polge, o perfumista-chefe da Chanel, gosta de dizer que acrescentar aldeídos aos ricos odores florais é muito parecido com o que acontece quando um cozinheiro pinga gotas de limão fresco sobre morangos: o limão transforma e adoça a experiência da fruta, ressalta os sabores e os intensifica. Aldeídos num perfume têm o mesmo efeito. Ao usá-los, Beaux queria passar a sensação de uma brisa revigorante de ar fresco, o odor da neve sobre a terra fria.

Para equilibrar essa austeridade, Coco pediu mais jasmim, o suficiente para deixar "os sentidos flutuando". Beaux avisou que ficaria caríssimo. Coco, então, pediu mais. Ela queria o perfume mais extravagante do mundo. Quanto mais radiantes fossem os aldeídos, mais rica e voluptuosa poderia ser a dosagem de jasmins e rosas. Esse contraste entre os exuberantes florais e o ascetismo dos aldeídos é parte do segredo do Chanel nº 5.

A embalagem, Coco fez questão de que fosse simples, quase um frasco farmacêutico. Lembrava um vidro famoso, desenhado por Lalique em 1907 para o perfume La Rose Jacqueminot, de François Coty. A etiqueta seria discreta e a tampa, quadrada.

As vendas começaram a crescer e, então, Coco, dona do perfume mais desejado do mundo nos anos 1920, faz algo espantoso. Para vender na loja de departamentos Les Galeries Lafayette, a produção teria que crescer bastante e, por isso, ela fecha acordo com a Bourjois, companhia dos irmãos Wertheimer - associação que passaria boa parte da vida tentando desfazer. É criada a empresa Les Parfums Chanel, da qual Coco fica com apenas 10%. Ela dava aos Wertheimer o direito de usar seu nome em perfumes e, em troca, teria participação nos lucros. O que se viu em seguida foi uma série de perfumes numerados com seu nome e preços mais modestos. Ela não gostou. Iniciou-se uma batalha jurídica de anos, que Coco perdeu.

Ainda assim, o Chanel nº 5 resistia e em plena II Guerra Mundial as vendas explodiam. Na loja da rue Cambon, soldados alemães faziam fila para comprar um vidro ou dois para presentear namoradas francesas ou levar para casa (depois, seria a vez dos americanos).

Durante a ocupação, os Wertheimer, judeus, fogem da França e, com astúcia recheada de lances dignos de filmes de espionagem, mantêm a produção do Chanel nº 5 nos Estados Unidos. De Grasse, cidade francesa até hoje considerada o berço de muitos perfumes, conseguem importar 317 quilos de jasmim, em troca de ouro. Essa quantidade daria para produzir cerca de 350 mil vidros pequenos de Chanel nº 5. Estima-se que, ao longo dos seis anos da II Guerra, tenham sido vendidos não menos do que 60 mil vidros por ano.

Coco viu na ocupação da França pela Alemanha de Hitler, quando foram confiscadas as propriedades de judeus, uma oportunidade para retomar o controle da Les Parfums Chanel. Mas não conseguiu, de novo. É nessa época que Coco se apaixona por um oficial alemão, Hans Günther von Dincklage, e lhe pede proteção para um sobrinho. Terminada a guerra, Coco foi investigada, mas o relatório final foi ambíguo e ela foi liberada. Há quem acredite que o ex-primeiro-ministro britânico Winston Churchill interveio, pedindo sua liberação.

A reputação de Coco estava em frangalhos, mas o Chanel nº 5 tinha se tornado um ícone. Era um luxo cobiçado por pracinhas americanos, que em 1945 também faziam fila em frente ao número 31 da rue Cambon.

A paz com os Wertheimer foi assinada em maio de 1946, depois de uma reunião com Coco que durou oito horas, em Paris. Ela passou a receber 2% das vendas mundiais do Chanel nº 5 e, aos 65 anos, tornou-se uma das mulheres mais ricas do mundo.

O leitor atento de "O Segredo..." pode sentir-se incomodado com alguns erros de revisão ("secreto" em vez de "segredo", "especialidade" no lugar de "especialista", e uma frase confusa no último parágrafo da página 50 sobre "o tumulto na vida pessoal de Coco Chanel"). O número de vezes com que a palavra "talvez" é empregada pode levantar as sobrancelhas dos mais céticos. Mas, para conhecer a fascinante história do perfume mais famoso do mundo e de sua criadora, vale a pena avançar e ler o livro até o fim. (por Cynthia Malta do Valor Econômico)

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