CARLOS HEITOR CONY Folha de São Paulo - 3 de Setembro de 2003
Judas, o arrependido
RIO DE JANEIRO - Um filósofo pré-socrático explicou por que só existe uma razão para a coragem e milhões de motivos para o medo. A coragem é direcionada para um alvo específico, pula-se o abismo, enfrenta-se a fera que nos assalta ou o inimigo que nos ataca. Já o medo é omni, universal, teme-se a tempestade, o raio, o naufrágio, a bala perdida, a doença, o imposto sobre a renda.
A eleição de Lula provocou medo em algumas pessoas. Temia-se que ele botasse o Estado de Direito no fosso, inaugurasse um governo populista, na marra, invertendo direitos e deveres do cidadão, promovesse, enfim, a revolução que sempre se espera dos excluídos que chegam ao poder.
Nada disso, até agora, aconteceu. Pelo contrário. Outro dia, um amigo dos mais cautelosos expressava sua admiração por Lula. Estava perplexo, mas exultante. Não votara nele, temia que a inflação voltasse, que houvesse desabastecimento nos gêneros de primeira necessidade, desordens várias e graves.
Todos os dias, procura nas folhas um edital, uma palavra de ordem do governo declarando que foi abolido o direito de propriedade, a inviolabilidade dos lares, a liberdade de consciência. E, como nada encontra nesse sentido, folga e rejubila-se, arrependido de não ter engrossado a grossa torrente eleitoral que colocou o PT no poder.
Peguei a palavra "arrependido" e fiz considerações sobre os grandes arrependidos da história e da lenda. Lembrei que Rabelais, após ter abandonado o sacerdócio, arrependeu-se amargamente e entrou para um convento. Mas logo em seguida arrependeu-se de ter se arrependido e voltou à sua vida de devasso.
E há o caso especial de Judas, o Iscariotes. Traiu seu mestre, beijou-o na face, entregando-o aos esbirros da ordem vigente. Depois, arrependeu-se e enforcou-se numa figueira. Não teve tempo de arrepender-se do arrependimento.
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