Depósito virtual das coisas, pensamentos, ideias, músicas, sentimentos, badulaques, livros, enfim... todas as manias de Mani Maria.
17 dezembro 2002
Breve estudo sobre a normalidade
Normalmente é um encontro. Normalmente é num tesão. Normalmente é um receio. Normalmente é uma espera. Normalmente é urgente.
Normalmente é cesariana. Normalmente o leite empedra. Normalmente as fraldas fedem. Normalmente os filhos crescem. Normalmente as tias mimam. Normalmente as mães reclamam. Normalmente os pais se mandam... normalmente é uma outra.
Normalmente dá despesa. Normalmente dá trabalho. Normalmente é sem emprego.
Normalmente o recheio é pouco. Normalmente a casca é grossa. Normalmente o buraco é fundo. Normalmente é lá pra baixo (normalmente o mais gostoso).
Normalmente o rabo não encurta, a curiosidade não mata e nem todos que têm boca chegam a Roma.
Normalmente as camisinhas são guardadas, as contas pagas, inconfidências escapam, o estômago se revolta, o veneno é conhecido e alguém já havia pensado nisso antes.
Normalmente os últimos ficam sem. Normalmente os primeiros têm mais medo. Normalmente os do meio não levam vantagem. Normalmente é sacanagem.
Normalmente vocações são encontradas, normalmente virgindades são perdidas: os dedos apontados, as pernas abertas, as mãos estendidas.
Normalmente os calos surgem. Normalmente o sapato aperta. Normalmente o troço é mole. Normalmente o espelho alerta.
Normalmente a vingança é fria. Normalmente faltam dentes. Normalmente o vizinho espia. Normalmente a orelha quente.
Normalmente os mudos se fazem de surdos e os cães guiam os cegos.
Normalmente falta luz.
Normalmente a água bate por aqui. Normalmente aqui é o único lugar. Normalmente os afogados comem o peixe cru. Normalmente coisas são pescadas no ar. Normalmente o ar está poluído pelas coisas que são arremessadas nele.
Normalmente encanamentos e encanadores dão problemas de manutenção.
Normalmente a inocência é uma explicação.
Normalmente é o passado, uma oportunidade, um sofrimento, uma esperança. Normalmente é um consolo. Normalmente se ajeita, se conversa, se aceita.
Normalmente amanhece o dia. Normalmente suaviza a noite.
Normalmente sonhos e pesadelos se confundem. Normalmente a confusão é desfeita com um pouco de consciência. Normalmente consciência é sabedoria. Normalmente a sabedoria está na escola. Normalmente os professores corrigem provas. Normalmente as provas são insuficientes.
Normalmente os curiosos são mais rápidos que a polícia; a polícia mais rápida que as ambulâncias e as ambulâncias mais rápidas que os carros funerários.
Normalmente é tiro trocado, é arma raspada, é sem testemunha.
Normalmente as leis são compridas e as letras minúsculas. Normalmente as obrigações são maiores. Normalmente os juízes não têm pena.
Normalmente os sorrisos, as piteiras, as roupas de baixo, os jornais e as fotografias amarelam.
Normalmente os mapas se complicam, os tênis se desgastam, os povos se misturam, as paixões se esgarçam, os monumentos são recobertos pela bosta das pombas e a História se repete.
Normalmente os pedestres são atropelados pelos bois, os bois são atropelados pelos carros, os carros pelos ônibus, os ônibus pelos trens e muitos aviões sobem por aqueles que caem. Normalmente as estatísticas confortam os ateus. Normalmente ateus viajam de avião. Normalmente os ateus vão à igreja.
Normalmente o Diabo tenta. Normalmente Deus perdoa.
Normalmente a carne é fraca e a vontade é grande. Normalmente é de fumar, é de beber, é de cheirar ou de comer. Normalmente é proibido. Normalmente é tudo junto. Normalmente a gente faz.
Normalmente os valores passam pelas rugas, a decência pelas blusas, os ferros pelos vincos, os prazeres pelas calças, a poesia pelas musas, as malas pelas alças e os inimigos pelas costas.
Normalmente as feridas cicatrizam e as varizes aparecem. Normalmente os sacos enchem e as bundas caem. Normalmente é cada vez mais ginástica por peso vencido. Normalmente há um sentido. Normalmente há um marido.
Normalmente não tem cigarro. Não tem pulmão. Normalmente não tem trocado, não tem espaço, não tem importância.
Normalmente é da carteira pra bolsa e da bolsa pro caixa. Normalmente é o mercado, o supermercado, o hipermercado etc.
Normalmente é uma hora e outra. Normalmente é desde sempre. É um ovo, um arroz e um feijão. Normalmente há uma razão. Normalmente só complica. Normalmente é um princípio. Normalmente um precipício.
Normalmente está lotado: um caminho é cortado, palavrões arremessados no retrovisor, milhões de mortos no televisor.
Normalmente atrás vem mais. Normalmente uma necessidade. Normalmente é outra fila, uma taxa, uma bolacha.
Normalmente a especialidade é cara, o salário é pouco, a fome é tanta, o remédio é raro... mas a morte é certa.
Por FERNANDO BONASSI (Folha - ilustrada de hoje)
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